A Química e as Ciências Humanísticas
"Quem entende somente de Química não entende direito nem ao menos de Química", enunciou Georg Christoph Lichtenberg, conforme consta na obra de Murilo Mendes (1). Entre o que Lichtenberg, professor de Física na Universidade de Göttingen, quis dizer e o que um ouvinte desavisado possa entender, há uma grande distância. Não tenho dúvida nenhuma sobre os conhecimentos químicos de Lichtenberg, mas também estou ciente da imagem negativa da Química junto à população, sobretudo, mas não somente, entre aqueles profissionais cujo campo de atuação se localiza - por enquanto - longe do mundo dos átomos e moléculas.
Assunto maçante a Química, profissional bitolado o engenheiro - são preconceitos - e como tais, sem fundamento - que já chamaram minha atenção quando no fervilhar intelectual dos anos sessenta, nas feira de livros da Casa do Politécnico, comprávamos, nós alunos de engenharia, obras de Economia, Sociologia, Política, Literatura, etc.. Naquela época, esquerdistas ou direitistas, discutíamos intensamente tudo que dissesse respeito ao ser humano. Um universo limitado ou amplo não são particularidades de uma ciência, nem de uma profissão - são características individuais e também de época. Não somos imunes, porém, à natural tendência do ser humano para formular preconceitos. Pessoalmente sempre tive dificuldades em entender, e mais em aceitar, o raciocínio dos profissionais de ciências humanísticas, quando falavam de ocorrências, de seres humanos, etc., sem considerar a matéria. Enquanto nós, de ciências empíricas, "corríamos na bitola", eles "voavam alto", em alturas irreais. Até o conceito de matéria dos filósofos materialistas pode parecer abstrato a nós que lidamos com átomos, moléculas, substâncias e reações químicas. Acidentalmente, encontrei a ponte entre os dois campos da Ciência nos trabalhos de Wilson (2), Dawkins (3) e Monod (4). A obra desses autores interliga o mundo das ciências empíricas com as humanísticas. Enquanto Wilson ainda permanece, preponderadamente, no mundo macroscópico, Dawkins fundamenta suas considerações nos genes e Monod "desce" ao nível da moléculas. A partir daí tento, no meu restrito mundo, mostrar aos profissionais da Química, e outras ciências empíricas, a necessidade de conhecerem as ciências humanísticas, e aos de humanísticas, a necessidade de considerarem a presença da matéria - em suas formas de átomos, íons, radicais, substâncias, interagindo e reagindo - ao estudarem o ser humano individual, nas relações coletivas e/ou em suas relações com o ambiente.
As ponderações que seguem, baseiam-se em conferência proferida num Congresso de Químicos (5) e tendo por objetivo mostrar aos jovens ingressantes na profissão a amplidão da ciência Química, acabaram formando uma exposição algo caótica, característica que preferi conservar.
Para iniciar, imaginemos que estamos numa bela praia - na verdade, poderíamos estar em qualquer outro lugar - com suaves ondas do mar, palmeiras balançando ao vento, um pequeno cão agitando feliz a cauda e seres humanos em diversas atitudes.
Se o leitor, Lichtenberg, Murilo Mendes e este autor dispusessem de óculos mágicos que em vez da matéria aglomerada permitisse ver os átomos, o quadro mudaria por completo: veríamos átomos de oxigênio, nitrogênio, carbono, hidrogênio, íons de sódio e de cloro, etc., alguns isolados, outros unidos em formações mais ou menos complexas, deslocando-se em movimentos compostos e complexos - seria difícil, talvez, dizermos no primeiro momento se essas espécies químicas pertencem a conjuntos ou se distribuem caoticamente. Isto é, o quadro macroscópico se "dissolveria" totalmente, mostrando-nos que os seres vivos fazem parte integral e, em escala microscópica, indista da natureza. Tirando os óculos mágicos, voltar-nos-ía o quadro macroscópico tranqülizante, mas a nossa visão sobre o mundo, em especial a biosfera, estaria definitivamente mudada, diante da percepção que a vida integrada no ambiente só é possível enquanto o ambiente for compatível com a vida. Tudo sobre o que a Ecologia nos adverte, tornar-se-ía claro de um só golpe. Um profeta ou sacerdote, ocupado em tecer um texto sagrado diria: "Do ambiente vieste, e ao ambiente retornarás"; um cientista intercalaria "no ambiente vives e sobrevives", já que sua preocupação inclui também o presente.
Se observássemos as unidades vivas de mais perto, veríamos, com nossos óculos mágicos, que nelas um número vasto de reações químicas vai se desenrolando continuamente. Algumas dessas reações necessárias à sobrevivência; outras, inevitálvelmente conduzindo a mudanças que caraterizam o envelhecimento do dito "organismo". Os seres vivos são, portanto, verdadeiras máquinas químicas que operam visando a sobrevivência.
Quase sempre a máquina química reage a distúrbios, tentando-se consertar; a tendência de os organismos vivos manterem um estado de equilíbrio diante de condições alteradas, sejam essas de natureza física, química ou psicológica é chamada de homeostase (6). Outras vezes o conserto de defeitos necessita tomar a via da interferência química (administração de remédios, que não passam de substâncias, ou misturas de substâncias químicas).
Algumas substâncias químicas, produzidas pelo organismo são associadas às emoções, por exemplo, ferormônios (atração sexual), dopamina (amor), serotonina (liderança e agressividade). Dopamina e serotonina são dois dos neurotransmissores, substâncias que têm o papel de mensageiros químicos do sistema nervoso e que podem ser, em parte, responsabilizados por nosso temperamento. Uma teoria bioquímica simplificada das doenças mentais é baseada em duas aminas encontradas no cérebro, a norepinefrina e a já mencionada serotonina. Excesso da primeira pode produzir um estado maníaco, enquanto a carência leva à depressão. Ácido 5-hidroxi-indolacético, proveniente da utilização da serotonina pelo organismo, é detectado em níveis inusitadamente baixos no fluido espinal de vítimas de suicídio violento (7). Ansiedade, medos irracionais, doenças mentais, psicoses e desordens de variados tipos e intensidades são curadas ou, pelo menos, aliviadas pelo emprego de substâncias que vão desde o estruturalmente simples carbonato de lítio à complexa reserpina e outras mais recentes (8). Uma superprodução de dopamina no cérebro está associada com distúrbios como a esquizofrenia, enquanto a subprodução do neurotransmissor gama-aminobutirato, com as crises epilépticas (9).
Agora suponhamos que com o tempo toda a problemática de distúrbios emocionais, mentais profundos passem a ter um diagnóstico e um tratamento puramente químico. Onde irão parar todas as variantes da Psicanálise como teoria, como ferramenta de cura e com todas as suas implicações filosóficas? (De repente, o problema "daquele" jovem paciente de Freud não era a rivalidade com o pai, mas simplesmente excesso de dopamina!) Entretanto, a idéia do complexo de Édipo, em forma extensiva, é recuperada pela Sociobiologia (10)). Se, por outro lado, pensarmos no grande número de profissionais de diversos tipos que dependem da psicanálise para sobreviver e que devotaram suas vidas a desenvolver e estender a psicanálise, a produzir a literatura da psicanálise, compreenderemos a enorme resistência a mudanças de enfoque.
Voltemos às emoções. Os ferormônios são substâncias que cada sexo produz e que se difundindo no ambiente têm o papel de atrair o sexo oposto. Agindo fora do nível consciente, expliquem, talvez, o mistério do amor à primeira vista. Em condições favoráveis (não esclarecidas), pode surgir a paixão fulminante, provocada pelo derrame de grandes quantidades de feniletilamina, com o conseqüente bloqueio das inibições, supressão da timidez, ousadia... e vão se cometendo os típicos "maluquices" dos apaixonados. O hipotálamo e neurotransmissores interagem, e o neurotransmissor dopamina participa com a transmissão das sensações agradáveis e a satisfação dos centros de prazer. O orgasmo consiste numa tempestade neuro-elétrica provocada pela liberação do neurotransmissor acetilcolina. O prazer, conseqüentemente, não é uma sensação subjetiva, mas uma realidade biológica (ou química). O processo todo, porém, se caracteriza como uma euforia dependente. Isto é, para o mesmo nível de prazer, cada vez maior quantidade de substâncias é necessária. Como o suprimento é interno ao orgamismo e, portanto, limitado, pode ocorrer que somente um novo parceiro ou parceira sexual possibilite o alcance de intensidades satisfatórias de prazer. Nesse ponto, se não houver uma inibição originada pela ou razão ou por doutrinação prévia, ocorrerá a busca de novo parceiro ou parceira - num ato dito de infidelidade. Sob esses aspectos então, a questão moral, ou ética, se reduz a um problema químico - e o pecado ou transgressão desvanece. Mais problemas para nossos legisladores religiosos ou leigos!
Saltando para outra área do conhecimento, a História, perguntamos: quais foram as razões da decadência do Império Romano? Poderia ter sido uma causa química como o envenenamento coletivo por impurezas do estanho, metal do qual confeccionavam cálices, etc., acumulados no organismo durante gerações?
Até o presente, restringimo-nos ao concreto, na sua forma de "estado da arte". Trata-se de conhecimentos considerados corretos, mas não necessariamente definitivos. Agora vamos dar asas à imaginação, um pouco.
Imaginemos um universo totalmente determinista, o qual denominaremos, digamos de Midla, e em uma parte do qual vivam seres, em sua constituição física, iguais a nós. Como partimos de premissas materialistas, suporemos que a cada evento vivenciado ou efetuado (experiência, conhecimento, raciocínio) por esses seres, corresponda uma alteração definitiva em seus cérebros. Essa alteração, constituiria a memória. As alterações ocorreriam em "unidades" ou conjunto de "unidades", cada um dos quais simbolizaremos com a letra U, e dos quais no momento, ainda não sabemos materialmente o que sejam (alterações em nível celular, molecular, neurônico, etc., de natureza química ou físico-química ou ambas). Baseando se nos computadores, suponhamos que cada uma dessas unidades tenha dois estados possíveis, adquiridos em função da informação recebida e armazenada; no caso dos computadores 1) carga elétrica e 2) não-carga; no nosso modelo os chamaremos de estado A e estado B.
Um cérebro primitivíssimo constituído por um único U, teria então dois estados possíveis, A ou B (cada um desses estados correspondendo a uma não-informação ou uma informação, eventualmente parcial, armazenada). Em linguagem matemática diríamos que o número de estados possíveis é 2 elevado à potência 1; reparemos que 2, chamada de base na matemática, é igual ao número de estados possíveis de uma unidade U, enquanto 1 é o número de unidades U. Um cérebro constituído de dois U's, não interligados entre si teria as seguintes possibilidades: U1 em A, U2 em A, ou simplificadamente, AA; continuando com a notação simplificada teríamos, ainda, as possibilidades BB, AB e BA. Nesse caso o número de possibilidades é quatro, ou 2 elevado à potência 2. Se U1 e U2 forem interligados, o número de possibilidades permanece o mesmo, mas tornar-se-á viável a comunicação ou interação entre as duas unidades. Continuando com a construção do cérebro, passemos ao constituído por três U's interligados. Os estados possíveis agora serão: AAA, BBB, AAB, ABA, BAA, ABB, BBA e BAB; isto é, teremos 8 estados possíveis, o que também pode se escrever como 2 (número de estados possíveis de uma unidade U) elevado à potência 3 (o número de unidades U presentes). Prosseguindo nesse raciocínio, e admitindo que cada U tenha não 2, mas m estados possíveis, e que o número de U's do cérebro seja n, o número máximo de estados de informação, memória ou conhecimento será igual a:
I = mn (1)
ou seja, m elevado à potência n. Denominemos o armazenamento de informações programação genética e programação educativa, visto que um grande número de informações já "nascem" conosco, enquanto outras informações são adquiridas no decorrer da vida. Os dois tipos de programação determinariam as ações e reações dos "midlanos". Como, por hipótese, o cérebro dos deles é semelhante ao nosso, o número n, deve ser da ordem de bilhões. Isto faz de I não só um número "inimaginavelmente" grande, mas constatando que duas pessoas, mesmo gêmeas, colocadas diante da mesma situação nunca reagem do mesmo modo, levaria os "midlanos" a acreditar no Livre Arbítrio, isto é, em que a pessoa pode agir, escolher, conforme a sua própria vontade ou, em outras palavras, em que dadas as mesmas circunstâncias, o sujeito poderia ter agido de outra maneira (11).
Mas nós sabemos (pois estabelecemos a hipótese) que Midla faz parte de um universo determinista. Sabemos também que em função do grande número de possibildades informativas e da impossibilidade de se encontrarem sempre no mesmo lugar, recebendo sempre informações idênticas, etc. duas pessoas nunca terão cérebros idênticamente informados até os mínimos detalhes, ou seja, nunca serão identicamente programados e, conseqüentemente, o deterministicamente esperado é que elas reajam diferentemente em situações iguais. Diremos então, que os "midlanos" vivem a Ilusão do Livre Arbítrio - ou que vivem no Mundo da Ilusão do Livre Arbítrio.
Esse modelo nos explica por que em Midla pais e filhos, que obrigatoriamente viveram programações educativas diferentes, jamais poderão se entender em tudo e constantemente. Conseguimos entender a razão de ser difícil ou impossível mesmo, eliminar os preconceitos, e as diferenças de visão entre mulheres e homens, separados não só pela educação, mas fisicamente diferentes. E assim por diante...
Por outro lado fica evidente que na impossibilidade da desprogramação, as tendências negativas, atos ameaçadores, etc., tem que ser neutralizados pela contra-programação, ou para usar um termo mais palatável, a contra-informação. Entre outras coisas, desde cedo as crianças devem ser educadas para a tolerância, ou mesmo apreciação recíproca, diante da diversidade racial, sexual; educados para a democracia e cooperação, e outras qualidades que os "midlanos" gostariam que fossem de sua sociedade, seu mundo.
Para finalizar, suponhamos que g seja o número, em termos fracionários, de unidades U ocupadas com informações genéticas, p a fração correspondente ao conhecimento adquirido e l a fração de U's ainda livres num determinado momento da vida de um midlano. Evidentemente, g + p + l = 1. Como g escapa à vontade do indivíduo, e l , vazio, não contém informação e, portanto não atua de modo nenhum (nem inibidor, nem promotor) na tomada de atitudes do "midlano", diríamos que o seu "livre" arbítrio é medido por
I = pmn (2)
ou seja, parecer-nos-ía, que quanto mais informação o midlano tivesse armazenado em sua mente (isto é, quanto maior fosse p), maior seria sua liberdade de tomar decisões. Isto, porém, não é necessariamente verdade, pois a "liberdade" depende da qualidade e da diversidade das informações. Um "midlano" que tivesse recebido um número enorme de informações doutrinárias - isto é, unilaterais - políticas ou religiosas, teria um "livre" arbítrio, além de ilusório, reduzido; tal "midlano" seria pouco tolerante e pouco capaz de aceitar pontos de vista diversos ou novos, ou de mudar sua visão sobre qualquer assunto. A "liberdade" e o "livre" arbítrio dos "midlanos", em conseqüência, depende profunda e intensamente de uma educação de conteúdo informativo amplo e diversificado.
Resumindo, tentei aqui demonstrar, de maneira explícita ou implícita, a importância do conhecimento de Química ao político, administrador, médico, psicólogo e psiquiatra, sacerdote, filósofo e talvez ao historiador e ao sociólogo; e quem sabe, tenha despertado o interesse do nosso leitor... Não se trata de uma proposta de exclusão - a Química é tudo, esqueçamos o resto - mas de inclusão: ao estudarmos determinado assunto, a consideração das numerosas formas em que aparece a matéria e das interações dessas formas pode conduzir a uma compreensão mais profunda; mais profunda do que a alcançada sem levar em conta a matéria.
Finalizo, acrescentando à frase de Lichtenberg, valendo-me, do "ligeiro" exagero tão habitual nas frases lapidares, eslogans, lemas, etc.: Entretanto, quem não entende de Química, não entende direito de nada!
Bibliografia
(1) Mendes, M., Retratos Relâmpago, São Paulo: Conselho Estadual de Cultura, 1973.
(2) Wilson, E. O, Sociobiology - The New Synthesis, Cambridge: Belknap/Harvard, 1975.
(3) Dawkins, R., O gene egoísta, Belo Horizonte: Itatiaia/EDUSP, 1979.
(4) Monod, J., O acaso e a necessidade, Petrópolis: Vozes, 1989.
(5) Rabóczkay, T., A Química e as Ciências Humanísticas, XXXVII Congresso Brasileiro de Química - Resumos, Natal, 1997, pág. 7.
(6) Mikal, S., Homeostase no homem, São Paulo: EDART/EDUSP, 1976.
(7) Seager, S. L. & Slabaugh, M. R., Chemistry for Today, Pacific Grove: Brooks/Cole, 2000, 4a. ed..
(8) Snyder, C. H., The Extraordinary Chemistry of Ordinary Things, Nova York: John Wiley, 1997, 3a ed..
(9) Lehninger, A. L., Nelson, D. L. & Cox, M. M., Princípios de Bioquímica, São Paulo: Sarvier, 1995, 2a ed..
(10) Rabóczkay, T., O futuro no passado, São Paulo: Ateniense, 1996.
(11) Giles, T. R., Dicionário de Filosofia, São Paulo: EPU, 1993.