Estudo identifica peptídeos que se ligam à barreira hematoencefálica

Estudo identifica peptídeos que se ligam à barreira hematoencefálica

Resultados podem levar ao desenvolvimento de ferramentas terapêuticas e diagnósticas para doenças do Sistema Nervoso Central

Por Maria Celia Wider

O endotélio vascular é formado por uma camada de células que reveste os vasos sanguíneos e regula o trafego de moléculas. Barreiras endoteliais são componentes essenciais dos vasos sanguíneo. Dentre essas barreiras,  a barreira hematoencefálica (BHE)  regula as trocas de nutrientes, metabólitos e moléculas inorgânicas entre sangue e cérebro, além de impedir a invasão de patógenos no Sistema Nervoso Central. Mas, por causa desta seletividade, ela também impede que fármacos cheguem ao cérebro, sendo um  obstáculo para tratamentos terapêuticos.

A diversidade vascular cerebral vem sendo pesquisada com o objetivo de descobrir marcadores moleculares que possam auxiliar em terapias direcionadas para o Sistema Nervoso Central.

Em artigo publicado na revista Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS), o grupo do professor Ricardo José Giordano, do Departamento de Bioquímica do Instituto de Química da USP, descreve a  identificação, com o uso da técnica in vivo phage display, de um novo grupo de peptídeos ligantes contendo o motivo fenilalanina-arginina-triptofano (FRW), que tem como alvo as junções das células endoteliais presentes nos vasos sanguíneos do cérebro. Os pesquisadores mostraram que os peptídeos FRW não se ligam aos vasos sanguíneos de outros tecidos analisados, e, surpreendentemente, também não se ligam aos vasos da retina.

 

“Como a retina é uma extensão do sistema nervoso central, sempre se acreditou que os vasos sanguíneos deste tecido fossem ‘idênticos’ aos vasos do cérebro. Nosso trabalho mostra pela primeira vez uma diferença molecular entre as barreiras hematoencefálica e hemato-retiniana. Isto abre a possibilidade de explorarmos este conhecimento para desenvolver ferramentas terapêuticas e diagnósticas para problemas que afligem o sistema nervoso central”, afirmou Giordano.

Segundo a doutoranda Fenny H.F. Tang, primeira autora do artigo, outro aspecto importante desse estudo é a possibilidade do uso de peptídeos FRW como ferramenta de imageamento para a detecção de anormalidades nos tecidos, o que pode torná-lo um marcador precoce para doenças neurodegenerativas.

 

Phage Display

Fagos (phage) são vírus que infectam bactérias. Com o uso de ferramentas da biologia molecular, cientistas fazem com que eles expressem uma variedade de peptídeos, que são cadeias curtas de aminoácidos. Os fagos geneticamente modificados apresentam (display) peptídeos exógenos em sua superfície. Desta forma, são formadas bibliotecas de phage display, coleções de fagos modificados, que podem ser utilizadas para isolar peptídeos que se ligam a qualquer molécula biológica.  Se o fago tem um peptídeo que se liga a um alvo biológico de interesse, ele pode ser isolado e o peptídeo identificado rapidamente, pois a informação para se produzir o peptídeo está no próprio DNA do fago, que pode ser sequenciado. O desenvolvimento da técnica de phage display rendeu o Prêmio Nobel de Química de 2018 aos pesquisadores George Smith e Gregory Winter.

Na década de 1990, a pesquisadora brasileira radicada nos Estados Unidos Renata Pasqualini, coautora do artigo, utilizou pela primeira vez a técnica in vivo phage display, injetando uma biblioteca de fagos na cauda de camundongos para identificar marcadores moleculares em vasos sanguíneos. “Os fagos ficam circulando no sangue e, quando um peptídeo se encaixa em um receptor, o fago que carrega esse peptídeo fica preso ali. É mais ou menos como acontece em alguns filmes de ficção científica quando injetam nanopartículas no corpo de uma pessoa”, compara Giordano, que realizou seu pós doutoramento, nos anos 2000, sob a supervisão de Pasqualini.

No laboratório de Giordano, a pós-doc Jussara S. Michaloski  construiu uma biblioteca com uma diversidade de dez bilhões (1010) de fagos expressando diferentes peptídeos.

Para realizar o presente estudo, Tang injetou essa biblioteca em um camundongo e, depois de 30 minutos, fez uma primeira seleção, recuperando os fagos que estavam ligados aos vasos sanguíneos do cérebro do animal. Incubando o cérebro com uma cultura de bactérias, os fagos infectaram as bactérias e se reproduziram, gerando milhares de cópias. Essa nova solução de fagos pré-selecionados foi injetada em um segundo animal. O processo foi repetido ainda pela terceira vez e mais fagos foram recuperados.

A pesquisadora então sequenciou a amostra, inicialmente pelo tradicional método de Sanger, obtendo 64 clones, e depois fazendo sequenciamento automático, no qual obteve um milhão de sequencias. Destas, três mil eram de peptídeos diferentes, dos quais cerca de um terço continha o motivo FRW. “Partimos de uma biblioteca com dez bilhões de possibilidades e chegamos a uma sequencia conservada, que foi validada”, explicou Tang.

O desafio seguinte foi validar os dados obtidos, ou seja, confirmar se a sequencia peptídica FRW tinha uma migração preferencial para o cérebro em comparação com outros órgãos.

Para isso, foram realizados ensaios de imunofluorescência e quantificação por contagem de colônias. Os pesquisadores injetaram fagos contendo peptídeos com a sequência FRW em um camundongo e, como controle, injetaram fagos selvagens, chamados Fd-tet, que não expressam peptídeos exógenos, em outro animal. Eles conseguiram marcar os vasos em verde e as partículas de fago em vermelho e visualizaram tecidos de diversos órgãos dos dois animais. Os resultados mostraram que os fagos contendo a sequencia FRW se ligam especificamente nos vasos do cérebro. Na avaliação quantitativa, constataram que os fagos FRW se ligaram quase 50 vezes mais do que os fagos controle no cérebro.

   

 

Um dado que chamou a atenção dos pesquisadores é que os fagos FRW estão presentes no nervo óptico, mas não nas retinas dos animais analisados. Os vasos sanguíneos da retina são ramificações dos vasos do nervo óptico. Segundo Giordano, “esse foi um dado curioso porque a estrutura das células endoteliais da retina é muito parecida com a das mesmas células do cérebro.”

Embora os pesquisadores não tenham ainda identificado o receptor do peptídeo FRW, eles conseguiram visualizar, utilizando microscopia eletrônica de transmissão, as células endoteliais no lúmen do vaso, a estrutura e o local de ligação dos peptídeos. Estes ensaios foram feitos no Instituto Adolfo Lutz, no laboratório da Dra. Noemi Taniwaki. Fagos são vírus filamentosos e interagem com as células endoteliais pela extremidade na qual se encontram os peptídeos. Eles se aglomeram na forma de tufos e se ligam na junção entre as células que formam a barreira hematoencefálica.

Por fim, considerando que a visualização in vivo em tempo real é essencial para entender processos biológicos normais e para o desenvolvimento de novos métodos diagnósticos para doenças, os pesquisadores avaliaram a capacidade de imageamento dos peptídeos. “Até então havíamos estudado a parte estrutural e queríamos também testar a aplicabilidade dos peptídeos, ver se era possível usar a sequencia FRW como uma ferramenta de imageamento, realizando experimentos com o animal vivo”, disse Tang.

Para realizar esse experimento, eles injetaram nos animais partículas do fago FRW marcadas com um corante que as tornou fluorescentes - um fluoróforo na faixa do infravermelho próximo, que atravessa tecidos e pode ser detectado. Nesse experimento foram usados fagos Fd-tet como controle negativo e fagos RGD-4C, que se ligam a proteínas de células endoteliais, como controle positivo. Eles fizeram imagens dos animais vivos a cada cinco minutos por 30 minutos para analisar a distribuição dos fagos no organismo e novamente observaram o acúmulo dos peptídeos FRW no cérebro dos animais.

Os pesquisadores também fizeram experimentos com um peptídeo sintético com a mesma sequencia e constataram que ele se liga igualmente ao vaso cerebral. “É importante tirar o contexto do fago para podermos trabalhar com ensaios de drug delivery, técnica que facilita a entrega de moléculas terapêuticas, e imageamento”, afirmou Tang. 

A sequencia sintética, no entanto, se torna insolúvel quando marcada com um fluoróforo.  De acordo com Giordano, o próximo desafio em relação ao uso dessa sequencia como ferramenta diagnóstica é reformular o peptídeo sintético para mantê-lo solúvel quando ligado a um fluoróforo.

Giordano e seu grupo também pretendem investigar as ligações dos peptídeos FRW no cérebro de um modelo animal de Alzheimer em comparação com um cérebro normal.

O artigo A ligand motif enables differential vascular targeting of endothelial junctions between brain and retina, de Fenny H.F. Tang, Fernanda I. Staquicini, André A.R. Teixeira, Jussara S. Michaloski, Gislene M. Namiyama, Noemi N. Taniwaki, João C. Setubal, Alina M. da Silva, Richard L. Sidman, Renata Pasqualini, Wadih Arap e Ricardo J. Giordano, pode ser acessado em https://www.pnas.org/content/early/2019/01/18/1809483116

 

 

Data de Expiração: 
31/12/2020